terça-feira, 24 de março de 2009

O HOMEM QUE CHEIRA MAL DOS OLHOS ESTÁ A MORRER, MAS CONVOCA OS SEUS PARES !!


Eu sei, mas não devia
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

(1972)- Marina Colasanti

quinta-feira, 19 de março de 2009

O HOMEM QUE CHEIRA MAL DOS OLHOS MORREU MAIS UMA VEZ !!




Morrer. Passar-se. Morto e enterrado. Comer as alfaces pela raiz. Ir para o céu. Ir para os anjinhos . Sete palmos abaixo da terra. Marar . Bater as botas. Esticar o pernil. Dar o peido mestre. Falecer. Passar para o outro lado. Dar a alma ao criador. Deixar-nos. Apagar-se. Fenecer. Ir para o inferno . Bater às portas do paraíso. Ir para o maneta. Expirar. Dar o berro. Dar de comer às minhocas. Quinar . Finar. Esvaecer. Esmaecer . Perecer. Ir desta para melhor

NA MORTE
O seu coração parará, perderá o pulso e você deixará de respirar. Ficará pálido, todos os seus músculos se relaxarão e o seu corpo começará a perder calor à razão de O,7°C por hora.

Após MEIA HORA
A sua pele vai perdendo cor, à medida que o sangue desce sob o peso da gravidade. Se estiver deitado de costas, o sangue afluirá à zona das costas e à parte inferior dos seus membros. Qualquer pressão sobre a pele irá torná-la branca, porque o sangue se dispersará. As suas extremidades tomam-se azuis. Os olhos começam a afundar-se.

Após QUATRO HORAS
Serão agora evidentes os primeiros sinais do rigor mortis. Antes do resto do corpo, as pálpebras, o rosto, o maxilar inferior e o pescoço tomar-se-ão rígidos. Um esforço violento ou uma electrocução pouco antes da ocorrência da morte acelerarão o rigor mortis. Este será retardado se a causa da morte for asfixia ou envenenamento por monóxido de carbono. Depois de se ter espalhado a todo o corpo, começará a desaparecer pela mesma ordem com que se instalou. Em trinta horas, todos os seus músculos ficarão relaxados.

Após VINTE E QUATRO HORAS
O seu corpo arrefeceu até atingir a temperatura ambiente. A menos que seja conservado no frio, a sua pele começará a tomar tons vermelho acastanhado. Em cerca de uma semana, esta descoloração alastrará ao peito, às coxas e, gradualmente, à totalidade do corpo. As suas feições poderão estar irreconhecíveis e você exalará um cheiro intenso a carne apodrecida. Temperaturas quentes ou uma morte súbita acelerarão o processo de decomposição. Se for conservado a uma temperatura amena e num ambiente seco, o seu corpo poderá mumificar, o que dará à pele uma aparência seca e encerada.

Após TRÊS DIAS
No interior do seu corpo, começará a formar-se gás, que poderá provocar o aparecimento de bolhas de líquido avermelhado com cerca de oito centímetros de diâmetro e o seu escorrimento através dos seus orifícios. Tudo isto confirma a história do corpo da rainha Isabel I: inchou tanto que rebentou o caixão.

Após TRÊS SEMANAS
A sua pele, cabelo e unhas estarão agora soltos, tanto que seria fácil arrancá-los. Mais cedo ou mais tarde, a sua pele rebentará expondo os músculos e a gordura. É nesta fase que os insectos e os vermes começarão a comer a sua carne. A temperatura ambiente determina a velocidade a que você ficará reduzido a um esqueleto.

Num ambiente quente e fechado, demoraria um mês até se tornar um esqueleto; ao frio e no exterior, levará mais tempo.

Teoricamente, o seu esqueleto poderá sobreviver eternamente.

Adaptado de um artigo da Esquire inglesa Junho 1991

In K nº 16, A carne: diário da decomposição, Janeiro de 1992

segunda-feira, 2 de março de 2009

VEXAME !




Humilhante condição a nossa, ser humano, mortal.
A finitude que nos magoa, desde o momento da concepção.
Somos o resultado de uma violação, brutal e voluntária.
Nascemos abruptamente e perdemos o elo mais precioso.
Masturbamo-nos com uma religião e ficamos ainda mais sós.
E depois, o vexame supremo - a morte.
O homem que cheira mal dos olhos. morreu vezes sem conta e não se conforma.